O Supremo Tribunal dos EUA está prestes a pronunciar-se sobre uma questão surpreendente vista da Europa: pode o governo federal continuar a proibir os consumidores de canábis de possuírem legalmente armas de fogo?
Em 20 de outubro de 2025, os juízes concordaram em ouvir o caso U.S. v. Hemani, que poderia redefinir como a seção 922 (g) (3) da Lei de Controle de Armas de 1968 se aplica a milhões de americanos que usam cannabis, mesmo em estados onde é legal.
A decisão pode reafirmar a autoridade do governo federal para restringir as armas de fogo com base no uso de drogas ou invalidar um elemento-chave da estrutura de controle de armas do país, marcando uma mudança histórica no tratamento da canábis e outros usuários de drogas ilegais sob a lei federal.
Lei federal sob fogo
A secção 922(g)(3) torna ilegal para qualquer “pessoa ilegalmente usando ou viciada em uma substância controlada” comprar ou possuir armas de fogo ou munições. Isto inclui a canábis, que continua a ser uma substância controlada de Categoria I a nível federal, juntamente com substâncias como a heroína e o LSD.
O Departamento de Justiça há muito que defende a lei, argumentando que ela “visa uma classe de pessoas que apresentam um perigo claro de uso indevido de armas de fogo”. No seu relatório apresentado ao Tribunal em junho, o Solicitador Geral dos EUA D. John Sauer, nomeado pelo Presidente Donald Trump, argumentou que a lei “está em conformidade com a Segunda Emenda” e visa proteger a segurança pública ao desarmar “utilizadores habituais de drogas ilegais”.
No entanto, os analistas jurídicos chamaram a atenção para o facto de a palavra “habitual” não constar da lei. A redação vaga da lei significa que qualquer pessoa que admita ter consumido cannabis, mesmo que apenas uma vez, pode tecnicamente perder o direito de possuir ou comprar uma arma de fogo. Esta contradição é uma fonte crescente de conflitos legais num país onde 24 estados legalizaram a canábis recreativa para adultos e quase 40 permitem o seu uso medicinal.
O caso Hemani
O caso Hemani foi cuidadosamente selecionado pelo Departamento de Justiça de entre uma série de casos semelhantes. O arguido, um cidadão americano e paquistanês acusado de consumir cannabis e cocaína e de ter alegadas ligações a entidades iranianas, apresenta um perfil complexo. Os observadores jurídicos sugerem que o governo escolheu este caso porque apresenta um arguido menos simpático, o que poderia facilitar a defesa da lei.
Nos últimos anos, os tribunais inferiores emitiram decisões contraditórias, algumas declarando a proibição inconstitucional e outras defendendo-a como consistente com os objectivos de segurança pública.
Em 2023, o 5º Tribunal de Apelações dos EUA decidiu que os cidadãos não podem ser desarmados “apenas com base em seu uso anterior de drogas”, concluindo que tal política não tinha base histórica. Do mesmo modo, em setembro de 2025, o Tribunal de Apelações do 11.º Circuito considerou que a proibição federal não se aplicava a pacientes que usassem canábis para fins medicinais de acordo com a lei estadual.
Noutra decisão importante, o Tribunal de Apelações do 10º Circuito apoiou um homem de Oklahoma cuja arma de fogo foi apreendida depois de a polícia ter encontrado canábis no seu carro. O tribunal considerou que o governo não tinha demonstrado que os consumidores de cannabis não intoxicados representavam um risco de violência futura, afirmando que a investigação estava “mais propriamente dentro da jurisdição do tribunal distrital”.
Noutro local, um painel de três juízes do Tribunal de Apelações do Oitavo Circuito reverteu a condenação de um arguido e reenviou o caso, questionando se o consumo de canábis, por si só, torna uma pessoa “perigosa”. Entretanto, o Terceiro Circuito sublinhou a necessidade de “juízos individualizados” na aplicação da lei, salientando que uma proibição uniforme poderia violar as protecções constitucionais.
Tensões legais entre a lei federal e os estados
Nos estados onde a canábis é legal, os consumidores responsáveis que possuem armas de fogo ainda correm o risco de serem processados ao abrigo da lei federal. Por exemplo, qualquer pessoa que compre uma arma de fogo a um revendedor licenciado deve preencher um formulário federal (ATF Form 4473) que faz perguntas sobre o uso de drogas ilegais. Admitir o consumo de canábis, mesmo num estado onde a sua venda é legal, é uma admissão de um crime federal.
A discrepância alimentou a frustração entre proprietários de armas, veteranos e pacientes médicos que dependem da cannabis para fins terapêuticos. Vários legisladores, incluindo alguns senadores republicanos, criticaram publicamente a inconsistência, argumentando que se os utilizadores de álcool podem legalmente possuir armas de fogo, os utilizadores de canábis devem ser tratados da mesma forma.
Questões constitucionais futuras
A maioria conservadora da Suprema Corte elevou nos últimos anos o nível de restrições ao direito de portar armas. Na sua decisão de 2022 no caso New York State Rifle &; Pistol Association v. Bruen, o Tribunal decidiu que a regulamentação das armas de fogo deve ser coerente com a “tradição histórica” da ratificação da Segunda Emenda em 1791.
Desde então, este precedente tem levado os tribunais inferiores a anular leis que não têm um análogo histórico claro, lançando dúvidas sobre se a Secção 922(g)(3) pode resistir a um exame minucioso.
O facto de o Departamento de Justiça se basear em exemplos ultrapassados, como as restrições do século XVIII aos católicos, aos escravos ou aos nativos americanos, tem sido amplamente criticado como jurídica e moralmente inadequado.
Se o Supremo Tribunal dos EUA confirmar a lei, estará a afirmar o poder do governo federal de restringir a posse de armas a todos os consumidores de drogas ilegais, independentemente da legalização a nível estatal.
Mas se a lei for anulada ou restringida, a decisão poderá conceder a dezenas de milhões de consumidores de cannabis um novo acesso aos seus direitos de segunda emenda, obrigando o governo a repensar a criminalização mais ampla do consumo de cannabis.
O resultado de U.S. v. Hemani, é esperado para 2026.