Uma breve história da canábis
A canábis tem sido um tabu durante séculos. Nos últimos anos, a opinião tem-se tornado cada vez mais aberta sobre o assunto, nomeadamente na sequência das várias despenalizações e legalizações americanas da canábis. Na Europa, os Países Baixos lideram o movimento, apesar de terem sido durante muito tempo o único país a despenalizar a canábis e de o tráfico entre países não ter diminuído.
No imaginário coletivo, os fumadores de marijuana são vistos como depressivos isolados do mundo, que passam os dias no sofá, a fumar na sala e a ver más séries de televisão. Para mudar a perceção do consumo de marijuana, é preciso olhar para o passado, para ver como certos estereótipos surgiram e evoluíram.
<2700 AC: A marijuana aparece nos escritos chineses. Segundo a lenda, o imperador chinês Shen Nung descobriu as capacidades curativas da planta, nomeadamente para tratar o reumatismo, a malária ou a distração. Outros registos escritos são encontrados 1000 anos mais tarde, relativos ao tratamento da diarreia, da disenteria e para estimular o apetite. Fonte
1545 d.C. Marinheiros espanhóis levam plantas de cânhamo para o Chile, para utilizar as suas fibras, marcando também a primeira aparição da planta nas Américas. Fonte
1532: O físico francês Rabelais menciona as virtudes medicinais da canábis em A Vida de Gargântua e Pantagruel. Ele chama-lhe a erva de Pantagruelion.
1611: Os ingleses introduzem o cânhamo na colónia de Jamestown (Virgínia), marcando a primeira aparição da planta no que viria a ser os Estados Unidos. A fibra de cânhamo tornou-se um importante produto de exportação, nomeadamente sob a forma de subprodutos como a corda, a gordura, o óleo e o papel. A Virgínia legislou pela primeira vez sobre o cânhamo em 1619, exigindo que os agricultores cultivassem cânhamo ou fossem penalizados. Fonte
1798: Durante a campanha do Egipto, Napoleão descobriu o uso da canábis, especialmente entre as classes egípcias menos privilegiadas. Os soldados franceses regressaram do Egipto com certas quantidades de haschisch nas suas bagagens. Napoleão proibiu completamente a canábis em França, mas o seu uso tornou-se gradualmente mais popular.
Por volta de 1830: o médico irlandês William O’Shaugnessy, que descobriu a marijuana na Escola Superior de Medicina de Calcutá, introduziu a canábis no mundo médico ocidental. Começou por testar os seus preparados em animais e depois tratou pacientes que sofriam de espasmos musculares e dores. Obteve também resultados positivos no tratamento da diarreia e dos vómitos, os sintomas frequentemente fatais da cólera. Fonte
Por volta de 1850: Os autores franceses Gautier e Baudelaire publicaram Le Club des Haschischins e Les Paradis artificiels respetivamente. Reuniam-se regularmente, juntamente com Gérard de Nerval, Victor Hugo, Honoré de Balzac, Eugène Delacroix e muitos outros, para consumir substâncias à base de dawamesk, uma espécie de compota de haxixe. Por seu lado, o físico Moreau publica Du Haschisch et de l’aliénation mentale (extracts), no qual estuda os efeitos do consumo de canábis.
1894: A Comissão Indiana de Drogas de Cânhamo reúne médicos indianos e ocidentais para discutir os benefícios do uso medicinal da canábis. A comissão conclui que “o uso moderado de marijuana não causa danos” e “não produz efeitos prejudiciais para a mente”. Reconhece, no entanto, que a marijuana pode resultar num uso tóxico, pelo que recomenda a sua proibição. Fonte
1910: A revolução mexicana provocou a partida de milhares de migrantes para os Estados Unidos. Trouxeram com eles uma cultura mais estabelecida de consumo recreativo de marijuana. Depois de 1910, histórias de imigrantes mexicanos que cometeram crimes violentos sob a influência da erva tornaram-se comuns nos Estados Unidos. Fonte
1931: Estimulado pela Grande Depressão e pelo desemprego em massa contextual, o ressentimento contra os imigrantes mexicanos (e o uso da maconha) aumenta. Na altura, a “investigação” associava o consumo de marijuana à violência e ao comportamento criminoso. Os criminosos identificados pertenciam frequentemente às classes desfavorecidas e a comunidades então designadas como “racialmente inferiores”.
1936: Lançamento do filme de propaganda anti-maconha Reefer Madness (trailer aqui). O filme acompanha um grupo de estudantes envolvidos em situações improváveis por causa do tabaco: atropelamento e fuga, homicídio, violação… Não é um exagero!
1937: Ignorando as recomendações da Associação Médica Americana, o Congresso dos EUA aprova o Marijuana Tax Act, que impõe severas restrições à prescrição e venda de marijuana. A maioria das empresas farmacêuticas americanas deixou de produzir medicamentos à base de marijuana, que se tornou ilegal nos EUA. A campanha de proibição é personificada pelo Federal Bureau of Narcotics e pelo seu diretor, Harry J. Anslinger. Fonte
1942: A marijuana é retirada da Farmacopeia Americana, uma revisão oficial de medicamentos, com o argumento de que causa dependência e é prejudicial.
1944: A Academia de Medicina de Nova Iorque publica um relatório, o Comité La Guardia, e conclui que a marijuana não causa insanidade ou violência, muito menos dependência, ou conduz a outras drogas mais fortes. Anslinger questiona o significado científico do documento e afirma que a “degenerescência de Hollywood” encomendou o relatório. Várias operações de Hollywood levaram à prisão de actores fumadores, e Anslinger passou a controlar a forma como Hollywood retrata a marijuana nos seus filmes.
Na década de 1960: O uso recreativo da maconha afeta todas as classes da sociedade, inclusive as classes média e alta. As comissões dos presidentes Kennedy e Johnson indicam novamente que a maconha não leva à violência ou ao uso de drogas mais fortes.
1967: Os hippies, bem como os meios de comunicação social como a Newsweek ou a Life, interrogam-se por que razão a marijuana é ilegal. Ao mesmo tempo, as detenções relacionadas com a canábis estão a aumentar.
1968: Richard Nixon é eleito presidente e promete restaurar a ordem num país atormentado por distúrbios civis. Nixon pede às estações de rádio que deixem de tocar música relacionada com a droga e aos canais de televisão que transmitam programas anti-droga.
1970: O Congresso dos EUA coloca a marijuana na “Categoria 1” das drogas, juntamente com o LSD, o MDMA, o peiote e os cogumelos alucinogénios. Este é o estatuto mais restritivo, normalmente reservado a drogas altamente viciantes e com elevado potencial de abuso. A cocaína, o ópio, a morfina e as anfetaminas são então classificadas como “Categoria 2”. Fonte
1972: A Comissão sobre o Abuso de Drogas e a Marijuana publica o seu relatório e apela à descriminalização para uso pessoal, bem como ao fim da dispendiosa e inútil política antidroga de Nixon. Entre 1972 e 1977, 11 Estados despenalizaram a canábis e muitos outros reduziram as sanções penais.
1977: O Presidente Jimmy Carter apela à descriminalização da marijuana, fazendo eco de certas associações médicas, como a American Medical Association, e de vários meios de comunicação social, incluindo o muito conservador National Review.
1986: Reagan inverte a tendência e assina o Anti-Drug Abuse Act, que prevê penas obrigatórias para crimes relacionados com a marijuana. As penas federais aumentaram e foram baseadas na quantidade de maconha envolvida no crime.
1996: A Califórnia torna-se o primeiro estado a legalizar o uso medicinal da marijuana. Vários outros estados se seguiriam nas décadas seguintes.
2012: O Colorado e o estado de Washingtion são os dois primeiros estados a autorizar a venda e o uso recreativo de maconha, para maiores de 21 anos.
Uma das tendências ao longo da história tem sido o embate entre a Medicina e a Justiça. Enquanto a primeira exaltava as virtudes medicinais da canábis e apoiava a sua descriminalização, a segunda condenava-a sistematicamente e pedia a sua proibição. A opinião pública, por seu lado, acabou por evoluir de “criminoso perigoso com sede de violência” para “drogado preguiçoso e apático”.
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