Liderada por investigadores do Salk Institute, em colaboração com o Oregon CBD, a Oregon State University e o HudsonAlpha Institute of Biotechnology, a equipa produziu o mais completo genoma da canábis até à data. Constituído por 193 genomas diferentes de canábis, este mapa genético revela uma diversidade espantosa e lança as bases para uma seleção acelerada na medicina, na agricultura e na indústria.
“A canábis é uma das plantas mais extraordinárias da Terra”, disse Todd Michael, autor principal do estudo e professor de investigação no Instituto Salk. “Graças a este novo plano genómico, podemos agora aplicar técnicas modernas de melhoramento para descobrir novos compostos e caraterísticas na agricultura, medicina e biotecnologia.”
Libertando o arsenal químico da planta
A Cannabis Sativa L. é uma verdadeira mina de ouro química. Pode produzir mais de 30% do seu peso seco em canabinóides e terpenos, pequenas moléculas sintetizadas nos tricomas glandulares que cobrem as flores da planta. Estes compostos servem de defesa natural para a planta, mas são explorados pelo homem pelos seus efeitos terapêuticos, aromáticos e psicoactivos.
Destes, o CBD (canabidiol) e o THC (tetrahidrocanabinol) são os mais conhecidos. A popularidade de estirpes como a Charlotte’s Web, conhecida pelas suas propriedades anti-epilépticas, por exemplo, favoreceu a aceitação do CBD pelo público em geral e despertou um interesse científico renovado.
No entanto, apesar da polivalência da Cannabis, que vai dos biocombustíveis aos óleos nutricionais, a sua arquitetura genómica permaneceu durante muito tempo um mistério. As restrições legais impediram a seleção e a investigação sistemáticas, deixando muitas caraterísticas inexploradas e subdesenvolvidas.
Um avanço na tecnologia genómica
Os estudos genéticos tradicionais têm encontrado dificuldades com a canábis devido ao seu genoma complexo. Como apenas 5% das plantas, a canábis é dióica, o que significa que existem plantas masculinas e femininas distintas. O seu genoma está também saturado de elementos transponíveis, segmentos de ADN que “saltam” através do genoma, complicando a sequenciação e a análise.
A equipa ultrapassou estas dificuldades utilizando tecnologias de sequenciação de leitura longa, que permitem descodificar milhares de pares de bases de uma só vez, em vez de montar sequências fragmentadas. Esta abordagem permitiu-lhes mapear ambos os conjuntos de cromossomas (um de cada progenitor) num processo chamado resolução de haplótipos, uma novidade para a canábis.
“Estamos entre os primeiros a explorar essa tecnologia de leitura longa em grande escala no contexto do pangenoma”, disse a coautora sênior Lillian Padgitt-Cobb, pesquisadora de pós-doutorado no laboratório de Michael.
“Isso nos dá todas essas informações sobre a variação estrutural e a ordem dos genes que podem informar as decisões finais sobre a seleção de caraterísticas favoráveis nas plantas de cannabis.”
Diversidade oculta e oportunidades de inovação
O estudo do pangenoma, que analisou 144 plantas de todo o mundo, revelou um nível surpreendente de diversidade genética. Ao resolver ambos os conjuntos de cromossomas de cada planta, a equipa reuniu 193 genomas, 181 dos quais nunca tinham sido catalogados antes.
Estes resultados põem em causa numerosas hipóteses. Apenas 23% dos genes foram encontrados em todos os genomas, enquanto 55% eram quase universais e 21% variavam de genoma para genoma. Surpreendentemente, os genes relacionados com o metabolismo dos ácidos gordos, crescimento e defesa das plantas foram os mais variáveis, oferecendo um reservatório para novas estratégias de melhoramento.
Entre as descobertas mais importantes, destaca-se a base genética da tetrahidrocanabivarina (THCV), um canabinóide menos conhecido que está a atrair um interesse crescente pelos seus efeitos energizantes e não psicotrópicos. Os investigadores identificaram que as variações na via de biossíntese dos ácidos gordos determinam a produção de THCV, abrindo uma nova fronteira no cultivo funcional da canábis.
Além disso, os genes THCAS e CBDAS, responsáveis pela síntese de THC e CBD, foram encontrados integrados em elementos transponíveis, sugerindo que a seleção dirigida pelo homem – breeding – contribuiu largamente para a diversidade genómica da espécie.
Repensar a seleção: o papel das plantas masculinas
O estudo também lança luz sobre os cromossomas sexuais da canábis. Durante anos, o melhoramento moderno deu prioridade às sementes feminizadas induzindo as plantas femininas a produzir flores masculinas, excluindo assim qualquer contribuição do cromossoma Y. Mas este atalho pode ter um custo.
“Há genes presentes apenas nas plantas ‘pai’ que podem ser usados para selecionar descendentes mais bem sucedidos”, escrevem os autores. Ao ignorar o genoma masculino, os criadores podem perder caraterísticas valiosas ligadas ao vigor, à resistência ou mesmo à produção de novos compostos.
De acordo com Ryan Lynch, outro coautor principal, a incorporação deste conhecimento genético na criação comercial poderia catalisar um crescimento significativo: “Uma vez que o interesse do mercado se combine com este novo conhecimento sobre o genoma da cannabis, que pode orientar os esforços de criação, penso que o hemp e os óleos de cânhamo irão realmente decolar na saúde humana e nas aplicações industriais”
Próximos passos
A equipe de pesquisa espera que o pangenoma da cannabis sirva como uma referência aberta e dinâmica para cientistas, criadores e formuladores de políticas em todo o mundo. Este conhecimento poderá orientar a seleção precisa para desenvolver cultivares adequadas para aplicações médicas, agricultura sustentável e até utilizações bioindustriais, como combustíveis alternativos para jactos ou óleos de sementes com elevado teor de nutrientes.
O estudo também aponta para a provável existência de um antepassado selvagem da canábis na Ásia, que poderia abrigar caraterísticas genéticas inexploradas, moldadas por condições ambientais únicas. A descoberta e sequenciação de uma tal planta poderia expandir ainda mais o pangenoma e oferecer ainda mais ferramentas para o desenvolvimento global das culturas.
Como é que isto foi possível?
A criação deste mapa genético sem precedentes da canábis só foi possível graças a uma combinação de perseverança científica, inovação tecnológica e evolução regulatória. Os American Agricultural Acts de 2014 e 2018, que legalizaram a investigação e o cultivo do cânhamo, desempenharam um papel decisivo. Proporcionaram aos investigadores o enquadramento legal para recolher amostras de plantas, colaborar entre instituições e aplicar técnicas genómicas avançadas a uma cultura outrora relegada para as margens da ciência.
De acordo com Todd Michael: “Estas mesmas restrições legais estimularam uma revolução clandestina no cultivo, revelando o poder da canábis como uma fábrica química.” Mas agora, com a mudança de políticas e os avanços da ciência, a canábis está a emergir das sombras, armada com um genoma, um plano e um futuro.